sexta-feira, 19 de outubro de 2012

COMO COMPRAR A COLETÂNEA DE CONTOS

No passado dia 1 de Setembro, nas Palavras Andarilhas, em Beja, foram lançados os dois volumes da minha Coletânea de Contos para a Criança na Imprensa Portuguesa do Séc. XIX. 



Custam 4,90€ cada um e como já me têm questionado como e onde os adquirir, aqui fica o processo mais fácil:
1) Basta pedi-los através de qualquer um destes contactos:
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1750-140 Lisboa
Telef. 217582285 - 968018309
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2) Fazer a transferência para a conta da APENAS LIVROS
 NIB: 0018.0000.3855.7964.0014.0.

3) Enviar o comprovativo de pagamento à Fernanda Frazão, minha editora, através do e-mail apenaslivros2@gmail.comcom os vossos dados para envio dos exemplares. 
Não são cobrados portes para Portugal.

Espero que gostem e adorava que me enviassem comentários acerca dos livros.




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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Às 5 da manhã, em Almadan

A noite esfriara e a lareira já estava acesa em casa da avó Maria. Constança e Serafim tinham-se aninhado aos pés da avó, à espera que ela começasse a desfiar as suas inúmeras histórias. Quando os pais tinham mais trabalho, ou precisavam de estar um pouco sozinhos para “ recarregar baterias” como eles diziam, ou mesmo só para namorar um pouco, a avó Maria ficava com os dois netos e era certo e sabido que, quando voltassem a casa, as suas cabecinhas iriam repletas de sonhos e ideias para lhes alegrar os dias e inspirar desenhos e histórias, que também eles já gostavam de inventar. 
A avó era uma septuagenária de pouco mais de metro e meio que não deixava os cabelos embranquecer, nem os olhos, de um sereno castanho-mel, perder o brilho. A sua gargalhada ecoava pela casa fora por dá cá aquela palha, e os netos estavam convencidos que ela achara no riso o elixir da eterna juventude.
Constança e Serafim eram os mais novos da família e eram ainda demasiado pequenos para pensar profundamente nas razões que levavam a avó a ser como era: bonita, risonha, bem disposta, excelente companheira de brincadeiras, óptima cozinheira e, acima de tudo, exímia contadora de histórias. Ambos estavam sempre desejosos de ir passar uns dias com os avós, porque os dias com ali passavam rápidos que nem foguetões a jacto, e as noites eram sempre de encantar. Além disso, o avô Manel,  levava-os a passear pelos sítios das histórias que a avó gostava de contar. Era assim como um GPS com pernas e que lhes falava numa voz calorosa, sem nunca se enganar nem ter que recalcular os percursos.
A coisa passava-se quase sempre da mesma maneira: à noite, enquanto a avó se instalava na cadeira alentejana para dar início ao serão, o avô Manel sentava-se na sua cadeira de baloiço, puxava o jornal para fazer as palavras cruzadas ou para ler alguma coisa que ainda não tinha tido tempo de ver com sossego, e nem parecia lá estar. Parecia não estar… mas estava, e bem atento! Constança e Serafim tinham-lhe pedido uma única vez se os podia levar a ver um sítio de que a avó falara nas suas “historietas para netos e netas”, como ela dizia. Ainda se lembravam da lenda e tudo: A Lenda da Moura Salúquia. O avô ouviu-os e disse:
- Ahhhh… com que então gostavam de ir às terras da Moura… Pode ser que se arranje alguma coisa. Vão lá dormir que eu vou pensar no vosso caso.
Claro que nem um nem outro suspeitavam do que os aguardaria na manhã seguinte. Sim, porque uma coisa é uma criança dizer ao avô que gostava de ver os lugares onde se passara uma história que tinham ouvido, e outra, muito diferente, é acordar no dia seguinte e ver um farnel arranjado, em cima da mesa grande da cozinha, e encontrar os avós, todos divertidos, a comunicarem-lhes que os iam levar a Moura, para visitarem as terras da moura Salúquia. Só aí é que eles perceberam que os adultos, às vezes, até nos podem surpreender.
Desde então, já sabiam: a cada serão de contos correspondia uma viagem. E isso era o que mais lhes agradava: a história ia dormir com eles, e depois acompanhava-os nos mais inusitados passeios por esse Portugal fora.
Constança, no alto dos seus treze anos, e Serafim, nos seus nove, encantavam-se com aquela dupla que lhes saíra em sorte: a avó Maria, contadora de histórias, e o avô Manel, caminheiro andante dos mundos físicos das histórias encantadas. 
Tejo, o rafeiro que eles conheciam desde sempre, chegara da sua última saída nocturna e, abanando o rabo, refastelou-se no cesto de verga que lhe servia de cama, aninhando-se na manta de retalhos de lã, aos quadradinhos multicolores, que a avó tecera. Pousou o focinho na berma do cesto e olhou para a avó, assim como quem diz “ já cá estou, pode começar o serão de contos!”
- Pronto, avó, podemos começar, já cá estamos todos!
- Hum… não sei se hoje me apetece… - disse a avó, franzindo a testa e arrebitando o nariz.
- Ó avó…CONTA LÁ!!! – pediram os dois em uníssono.
A avó deu uma das suas gargalhadas cristalinas e transfigurou-se: o seu metro e meio de altura avolumava-se sempre que ela começava a narrar, os olhos ora adocicavam ora endureciam, consoante a história e a personagem, e a voz… AH, a voz…! A voz da avó, quando ela os levava para a Terra Onde Tudo é Possível, a Terra das Histórias e dos Contos, não era uma voz, eram mil vozes, profundas ou estridentes, meiguinhas ou severas, risonhas ou tristes… Enfim, a voz da avó era indescritível e ma-ra-vi-lho-sa!
Respirou um pouco mais fundo e começou, de mansinho.
- Todas as semanas se reuniam, do lado de lá, os Seres Mágicos.
- Ó avó, o que é o lado de lá? – indagou, curioso, o Serafim.
- Ora, mano, o lado de lá é Almada, não é avó? Diz-se “o lado de lá”, ou “a outra banda” porque se tem de atravessar a Ponte para se lá chegar.
- É isso mesmo, minha querida. Mas não é só pela ponte que se chega ao lado sul, pode-se ir também de barco. Eu fui lá muitas vezes, de cacilheiro, e ainda hoje a travessia para o lado de lá se faz usando o Tejo como estrada. Vocês nem imaginam os milhares de pessoas que fazem essa travessia diariamente, para trabalhar, estudar ou apenas passear. Mas dizia eu…   
Todas as semanas se reuniam, do lado de lá, os Seres Mágicos. O local ia variando entre Cacilhas e Porto Brandão, Sobreda, Almada, Caparica, enfim, toda a zona era ideal para aqueles encontros de gente tão especial.
Quando eram os seres das águas os anfitriões, tinham de se encontrar pertinho das águas do Tejo ou das do Oceano Atlântico.
Mas se eram os seres da Terra que recebiam os amigos, sabem qual era o local privilegiado?  A Mata dos Medos.
- A Mata dos Medos, avó? Porque é que se chama assim? – quis saber a Constança.
- Não interrompas, mana, deixa ouvir a avó!
- Deixa, Serafim, tu também deves querer saber por que razão aquela mata tem esse nome, não queres?
- Sim, claro! – replicou ele, esbugalhando mais ainda os olhitos da cor da mata.
- Como vocês sabem, as pessoas têm medo de muitas coisas que não conhecem. Têm medo do escuro, têm medo dos barulhos diferentes, têm medo das sombras, enfim, são umas medrosas, é o que é! O que elas não sabem é que essas coisas de que têm tanto medo são coisas normais, comuns, na casa dos Seres Mágicos. Ora, como vocês muito bem sabem, os lugares perto das águas, dos rios, das matas, das florestas, são nem mais nem menos que os lares dos seres encantados e a Terra Onde Tudo Pode Acontecer. E é só por isso que acontece.
- OHHHHHHHHHHH… E quando se passa esta história, avó?
- Ah, pois é, eu não comecei a contar com Era uma vez, porque desta vez a história passa-se num tempo suspenso entre o tempo das histórias e o tempo sem elas, no passado, mas também no presente, e até no futuro, para além de tudo aquilo a que chamamos Tempo.
- Isso é complicado, avó…
- Só parece que é complicado, mas não é: o que vocês precisam perceber é que os Seres Mágicos são eternos, se os tratarmos com respeito, mas que são também muito frágeis e que, se não tivermos cuidado, podemos perdê-los para sempre! Vocês já imaginaram o que seria de nós todos sem aquelas criaturas que nos oferecem o poder de sonhar, de imaginar?
- Eu nem quero imaginar…
- Nem eu! Só de pensar nisso até fico arrepiada, cheia de “pele-de-galinha”, olha aqui! – ripostou a Constança, mostrando o braço todo eriçado ao irmão.
- Adiante, - continuou a avó – vamos lá então ao conto. Naquela ocasião, o local escolhido para a reunião tinha sido precisamente a Mata dos Medos, porque calhava aos elementos da natureza florestal a organização. Sítios onde há muitas árvores e muito verde são povoados pelos seres  elementais, isto é, os seres que fazem parte daqueles sítios, e na Mata dos Medos há inúmeros Elfos e Duendes, Dríades e, obviamente, Fadas, só para falar nos mais importantes.
Festejavam eles, nesse dia, o aniversário da mais velha de todas as Dríades, e a ocasião era da maior importância. Por isso, na zona mais recôndita da Mata dos Medos, onde os Humanos raramente iam, as fadas andavam numa azáfama a organizar tudo: os raios de sol,  as poças de água, os arco-íris duplos, as nuvens-de-algodão-doce e as nuvens-carneirinho, a brisa-da-mata e o vento-bailarino, a chuva miudinha e a neve-que-só-vinha-de-visita ,
as bolinhas de azevinho, as flores-às-cores e todos os restantes  seres dos cinco elementos da Natureza: Terra,  Ar, Água, Fogo e Metal. Nas reuniões da Natureza, se faltar algum destes elementos, é como se faltasse um filho ou um neto numa casa de família numa noite de consoada.
- Oh, avó, desculpa lá, mas vais ter de me explicar o que são as Dríades, porque eu não sei… - pediu, embaraçado, o Serafim.
- Ah, pois é, isso é muito importante! As Dríades são os seres protetores das árvores, por isso habitam nelas. São muito idosos e zangam-se facilmente se percebem que as suas protegidas estão a ser maltratadas, por isso não gostam de lenhadores.
. Quer dizer, então que quando cortamos lenha para a nossa lareira estamos a tirar as Dríades das suas casas?
- Não, Serafim, porque há árvores que têm de ser cortadas mesmo, para que a floresta também não se aproprie de todo o planeta. Não podemos  é cortar só porque nos apetece, tem de haver um equilíbrio, entendes? O que devemos fazer, sempre que precisamos de cortar uma árvore, ou mesmo só uns ramos, é pedir licença à Natureza e às Dríades, prometendo plantar uma nova árvores por cada uma que tivermos que cortar. Assim, a Natureza fica em paz e as Dríades não se zangam nem entristecem.
- Ok, avó. Continua.
- Os Elfos, como gostavam de fazer cara feia a toda a gente, que é como quem diz, aos intrusos, tinham ficado de vigia e atarefavam-se a verificar se o solo estava bem protegido pelas ervas e pelas flores-do-mato, e se as pedras estavam engalanadas de musgo e líquens. Tudo tinha que indicar como estavam felizes por estarem juntos a festejar a mais idosa de todas as Dríades que, por sinal, tinha um nome bem bonito: Dríade Verdantina. Tinham-lhe chamado assim porque a sua copa era de um verde-esmeralda lindíssimo e as suas folhas faziam lembrar o mar, naqueles dias em que as algas dançam mais à superfície, transformando-o num festim verdejante. Os Elfos são especialistas em plantar cogumelos, e tinham desenvolvido um novo, só para homenagear a aniversariante.
Por sua vez, os Duendes, brincalhões como só eles sabem ser, estavam alerta também, para o caso de alguém se aventurar para aqueles lados da mata sem ser convidado. Caso isso acontecesse, os Duendes fariam esse intruso perder-se por lá, pelo menos por uns tempinhos, até que lhes apetecesse resgatá-lo. Nenhum humano poderia estragar aquela celebração. 
- Ui, já estou com medo de ir até á Mata dos Medos, parece mesmo perigosa.
- Não, Serafim, a mata só é perigosa para quem a maltrata. E se um dia, por acaso, te perderes no campo, chama com a tua mente um Duende e faz-lhe uma oferta: uma pedrinha, uma fruta, uma flor… Verás como depressa encontras o teu caminho de novo. Os Duendes são como as crianças traquinas, gostam de brincar. Não é, Constança?
- Sim, sim. Lembras-te quando eu me perdi quando fomos apanhar pinhas para a lareira, aqui bem pertinho da casa, Serafim?
- Sim, íamos os dois, e tu não tiveste medo nenhum… Agachaste-te, apanhaste uma pedrita com uns veios coloridos e começaste a cantarolar
 “Vem cá meu amigo,
meu amigo duende
Chega-te aqui
 Toma, um presente!” - trauteou o Serafim.
 – Agora percebo tudo… tu não tiveste medo porque já sabias os truques que a avó te tinha ensinado…!!!
- Claro, sou mais velha, sei mais coisas que tu. Mas se estiveres atento, rapidinho vais aprender também.
-  Melhor ainda do que aprender é acreditar que se pode aprender , estar sempre alerta porque, quando menos se espera, zutttttt! Lá vem mais uma coisa nova, ou mesmo, quem sabe, mais uma coisa mágica!!! Não é o que tu sempre dizes, avó?
- É, sim, Serafim. Estou orgulhosa de ti! Estás a perceber que para entrar no mundo dos sonhos e dos encantos é preciso acreditar nele. Mas vamos lá continuar.
Quando estava tudo preparado, e todos os amigos nos seus postos, deu-se início à reunião para homenagear a mais velha Dríade, a Verdantina.  A Fada Fadinha, que era a mais nova de todas as fadas, adiantou-se e começou, com a sua voz melodiosa:
- Hoje completas mais um aniversário, Verdantina, e queremos que nos digas qual é o teu maior desejo, para to podermos satisfazer.
Verdantina sorriu com o seu sorriso e respondeu:
- Obrigada, Fada Fadinha, que falas por todos os seres da nossa casa maior, A Mata dos Medos. Para mim, não quero nada, pois a minha já muito longa vida encheu-me de acontecimentos bons, umas vezes, maus, outras, mas o certo é que a minha tem sido repleta, pois tenho o que de melhor há neste mundo: amigos.
- Mas Verdantina, nós queríamos mesmo muito homenagear-te com esta festa e com a concessão de um desejo, ou dois, ou mesmo três… mais é não podemos, como sabes, porque as Fadas só conseguem satisfazer três das nossas maiores vontades.
- Muito bem, tenho um pedido que te quero fazer, Fada Fadinha. Tenho guardado um segredo nestes útimos anos.
-AHHHHHHHHHHHHHH!!!! – espantaram-se todos.
- É verdade, meus amiguinhos. Já vai para três anos que recebo uma visita silenciosa, uma criança, pouco maior do que um arbusto quando começa a crescer. No tempo dos Humanos, aquela criança, o Bernardo, deve ter uns anos poucochinhos, aí uns onze. E vem até aqui quase todos os meses, pelo menos duas vezes, normalmente ao sábado.
- Mas como é que ele consegue vir até aqui, a esta parte tão densa da mata onde muitos adultos se não aventuram?
- O Bernardo é um explorador, gosta de se embrenhar no bosque e de descobrir as plantas, os insectos, os pássaros. É um menino muito só. Os pais estão separados e ele aparece por aqui sempre que vem passar o fim-de-semana com o pai, que mora ali para os lados da praia. Uma das vezes que ele se encostou, já cansado, ao meu tronco, li-lhe os pensamentos e sabem o que é que eu vi?
- Não, conta lá, Verdantina – pediu o corvo.
-Vi que, àquela criança, ninguém teve tempo para contar uma história.
- Impossível!!! Como é que isso pode ser?
- Não sei… mas é verdade verdadinha. Por isso, o Bernardo é um menino triste, porque não sabe o que há-de fazer com a chama da imaginação. É preciso que se lhe conte ao menos um conto, para que ele possa despertar para o nosso mundo mágico.
- E como vamos nós conseguir que alguém lhe conte um conto, Verdantina?
- Na próxima vez que o Bernardo aqui vier, a Fada do Tempo irá fazê-lo ficar despreocupado com as horas para que ele possa relaxar. Tu, Duende Safadinho, irás trazê-lo, sem que ele dê conta, até aqui, e tu, Fada Fadinha, ficas encarregue de lhe contar a sua primeira história.
- Mas que grande responsabilidade, Verdantina! E se o Bernardo não gostar da história que eu lhe contar?
- Isso é inviável, porque tu és a melhor contadora de histórias da Mata dos Medos.
- Sim, sim, Fada Fadinha, ninguém melhor que tu faz de contadora!
  - Muito bem, fica então assim combinado. Verdantina, verás o teu desejo realizado.- prometeu, adejando as suas asas da cor da água da chuva, a Fada Fadinha. – Mas vamos ter de combinar um sinal para que nós saibamos, quando entrar o Bernardo na Mata, que é dele que se trata.
Depois de pensar um pouco, a Dríade informou:
- Estejam atentos à canção dos meus ramos e ouvirão: Às 5 da manhã, em Almadan!!! Quando isto ouvirem, já sabem que é o Bernardo que está a chegar à nossa mata.
- AH… fantástico, lembraste-te da lenda de Almada? – perguntou o Arco-íris.
- Sim, e podia lembrar-me de muitas mais lendas desta zona, mas acho que esses sons são calmos e os meus ramos não se cansarão muito para entoarem essa canção:
"Às 5 da manhã, em Almadan!!! Às 5 da manhã, em Almadan !!! Às 5 da manhã, em Almadan!!!"
Todos concordaram e, como já se estava a fazer tarde, tiveram que dar a reunião por acabada, pois cada um deles tinha de ir à sua vidinha de todos os dias, que a Natureza, para ser assim natural, não tem muito tempo para descansar.
Passaram uns dias e, num sábado em que os Humanos festejavam o Dia da Criança, Bernardo dirigiu-se, como era seu costume, à Mata dos Medos. Aquele era um sítio que lhe fazia bem, sem ele saber explicar porquê. Gostava de se embrenhar pelo mato dentro e ver as coisas da terra e as coisas do ar. Encontrava sempre coisas e cores diferentes e por vezes até pensava que elas se vestiam de gala só para ele ver. Ele chamava à Mata dos Medos a sua Mata dos Segredos, pois percebia que ela mudava.
Daquela vez, Bernardo começou a ouvir um rumorejar de árvore que parecia chamá-lo. Não distinguia  palavras, mas aquele era um bulício que ele jamais ouvira.
Às 5 da manhã, em Almadan!!! Às 5 da manhã, em Almadan!!! Às 5 da manhã, em Almadan!!!  
Todos os seres da floresta acorreram ao chamamento da Dreíde Verdantina e Bernardo caminhou, caminhou, até que se perdeu – todos nós sabemos bem porquê – e, por fim, cansado, encostou-se ao tronco da casa de Verdantina e adormeceu.
Então, a Fada Fadinha, a melhor contadora de histórias da Mata dos Medos, começou a soprar-lhe ao ouvido esta história:
O DESCANSO DO PAI NATAL

Mel era o nome por que a menina gostava de ser chamada. Tinham-lhe dito que o seu nome, Melissa, fora emprestado de um arbusto bonito, com cujas folhas se podia fazer um chá que acalmava os nervos e a barriga, o chá de erva-cidreira.
Explicara-lhe ainda a mãe - que era dessas pessoas que pensavam que o conhecimento não ocupa lugar e que, por mais pequenas que as crianças fossem, elas eram apenas pequenas de tamanho e não de cabecinha -  que o seu nome, Melissa, tinha a origem no nome da ninfa grega, Mellona, protectora das abelhas.
-  Sabes, Melissa, ainda hoje há uma grande amizade entre a planta do chá, a erva-cidreira, e as abelhinhas. Em cada colmeia só pode existir uma abelha-mestra, que também se pode chamar abelha-rainha, e se, na primavera, nascerem várias rainhas na mesma colmeia, o enxame tem de se dividir, formando enxames menores, cada um com a sua própria abelha-rainha, que parte em busca de um novo sítio para morar.
Os povos antigos sabiam que o cheiro da melissa ou erva-cidreira atraía as abelhas, por isso, para as ajudarem a não andar muito tempo à procura de uma nova casa, punham folhas frescas trituradas em colmeias vazias para atrair os enxames novos. Percebeste, Melissa?
- Hummmm… percebi, mas tudo não! O que é uma ninfa, mãe?
- Uma ninfa é um ser mágico, alado, que vive em sítios maravilhosos como os rios, os lagos ou as florestas.
- Só podem viver aí? E o que quer dizer “alado”?
- Quando gostam muito de um objecto, as ninfas também podem fazer dele a sua casa. As ninfas e os pássaros são seres alados, isto é, seres com asas, entendes Melissa?
- Ahhhhhh….! Já percebi! Elas podem deslocar-se rapidamente de um lado para o outro, não é mãe?
- Sim, e além disso estão sempre alegres, porque protegem a natureza e as pessoas, tal como as fadas, de quem ainda são parentes. Até há quem diga que as ninfas são, nem mais nem menos, do que fadas-criança.
- Obrigada, mãe, por me contares estas coisas todas fantásticas. Tu já viste muitas ninfas? E fadas?
A mãe pensou durante um bocadinho e respondeu:
- Como são muito pequeninas, menos que microscópicas, as ninfas não se conseguem ver muitas vezes, mas podemos senti-las, isso podemos! E eu já as senti muitas e muitas vezes.
- E como é que se sabe que se está a sentir uma ninfa??? – perguntou a Melissa, de olhos arregalados.
A mãe apertou-lhe mais a luva de um dedo só, destinado ao polegar, debaixo da qual se encontrava, quentinha como uma mini-lareira, a sua mãozita de 5 anos. Depois, agachou-se, pôs a sua cara sorridente ao mesmo nível da da Melissa e respondeu:
- Tu só me fazes perguntas difíceis… sabes que as mães nem sempre sabem explicar todas as coisas. Mas eu acho que se sabe que anda por aí uma ninfa a esvoaçar quando as perguntas que temos no nosso coração são respondidas como que num sopro, assim, sem mais nem menos.
Melissa acenou com a cabeça através do gorro vermelho, igual às luvas de um dedo só.
E pôs-se aos pulinhos, enquanto o caminho para a pré-primária ia encurtando cada vez mais.
A mãe tinha daquelas coisas, gostava de a levar a pé, deixando o carro na garagem, porque dizia que era muito mais saudável andar a pé do que sempre de automóvel. Mel concordava, e ia pensando como era bom poder ir saltitando, em vez de ir amarrada a um banco de criança, daqueles que tinham inventado para pespegar nos assentos traseiros das viaturas, sem se poder mexer por causa do cinto de segurança.
Mel tinha um desejo secreto: saber onde descansava o Pai Natal quando já tinha saído da Lapónia para distribuir os brinquedos aos meninos e meninas. Sim, porque isto de andar por milhares de casas e chaminés a subir e a descer, carregadinho de brinquedos, devia ser muito cansativo, e ninguém a convencia que ele era incansável, até porque, o pobrezinho, era assim mais ou menos da idade do avô Zé, que já se cansava muito só de a agarrar ao colo. Dizia ele que ela estava pesada, ela, que só pesava 23 kilos!!! Aquilo só podia ser mesmo da idade, e se o avô Zé se cansava, o Pai Natal também se cansaria, e devia ter um lugar para descansar os pés.
- Ó mãe, tu achas que me podes fazer um favor?
- Claro, Melissa, ora diz lá que favor queres que te faça.
- Pára de me chamar Melissa! Eu sei que é o meu nome e tudo, e até é um nome bonito, eu gosto, e talvez até queira que me chames assim quando eu for crescida. Mas agora, que sou pequenina ainda, não me podias chamar só Mel? É que está mais de acordo comigo, e até tem a ver com as abelhinhas de que me falaste há pouco, não é?
- Oh, nunca tinha pensado nisso, Mel, está muito bem observado! A partir de hoje, deste minutinho, passarás a ser chamada como preferes: Mel! E até dá bem contigo, que és um doce de menina.
Mel puxou a mão da mãe e segredou-lhe ao ouvido, quando ela se baixou:
- Obrigada, mãe!!! Agora vou ficar caladinha e pedir a ajuda de uma ninfa para me dar a resposta ao meu segredo.
E dizendo isto, fechou a boca e começou a falar com a ninfa do seu nome. Dizia ela, dentro da sua cabecinha:
“ Ó ninfa Mellona, já que o meu nome vem do teu, podes ajudar-me a perceber onde é que o Pai Natal descansa nesta quadra do Natal? Eu sei que não te vejo, e até pode ser que tu tenhas mais que fazer do que aturar uma miúda de 5 anos cheia de perguntas, mas se é verdade que existes, eu sei que tu vais arranjar uma maneira de me dar resposta. Vou ficar à espera, está bem?”
Nisto, o caminho tinha-se percorrido todo, sem que Mel desse conta.
- Mel, chegámos! Está na hora do meu beijinho e do meu abraço!
Alegre que nem um passarinho, Mel lançou os braços à roda do pescoço da mãe e deu-lhe um beijo repenicado.
Quando se virou, para entrar na escolinha, mal pode acreditar no que os seus olhos viram: o presépio que tinham construído nas aulas estava armado, no átrio, e a seu lado, pachorrentamente dormindo, sentado no sofá em forma de lua, estava nada mais nada menos do que o Pai Natal!
Hoje, a Mel já deixa que lhe chamem Melissa, e conta aos seus filhos a origem do seu nome, e o segredo que a ninfa lhe desvendou: o Pai Natal descansa no sofá em forma de lua do átrio da escolinha, ao lado do presépio.”
- Cumprido o desejo da Verdantina, a Fada Fadinha deixou o Bernardo acordar suavemente e então…
Bem-dito e louvado, está o conto acabado!
- Ó avó, não pode ser, como é que o conto está acabado se não sabemos o que aconteceu depois ao Bernardo? Isso é batota!!
- Hummm… bem me parecia que vocês não me iam deixar acabar assim.
O que eu queria dizer é que, por hoje, acabou-se. Já se fez muito tarde, e vocês precisam de ir para a terra dos sonhos também. Amanhã há mais.
- Vá, vamos deitar, que a Mata dos Medos espera-nos amanhã de manhã. Iremos lá passar o dia.
- Obrigada, avó, obrigado avô.
E lá subiram a escada, seguidos pelo cãozito Tejo, os dois irmãos, Constança e Serafim. Durante o sono, sabiam que iriam sonhar com todas aquelas personagens da Terra do Faz-de-Conta e no dia seguinte, conforme prometido, iriam até à Mata dos Medos.
Que outras histórias lhes reservaria a avó? E até onde os levaria o avô?


(Conto original com que concorri ao Prémio Literário Maria Rosa Colaço deste ano.) 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Era uma vez a Leitura…

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Literatura Infantil e Mundo Globalizado ,  U. do Minho - 29 de Janeiro de 2011


Há muito, muito tempo, a Leitura…


… encontrou, não uma, mas várias bruxas maléficas, conhecidas pelo nome de Novas Tecnologias, que a derrotaram para sempre.

Parece ser este o final de desencanto que muitos vaticinam para a Leitura e, consequentemente, para a Literatura Infantil. Num mundo em mudança e cada vez mais globalizante, papões, monstros e lobos maus assumiram novos nomes: videojogos, chats, Messengers, IPods, iPads, Podcasts, e desta feita não amedrontam as crianças, mas aterrorizam os adultos que, à relutância em aceitar o que é novo, juntam o medo do desconhecido e o embaraço de deixarem de ser “mestres” em algo que dominam, pelo menos minimamente – a leitura – para passarem a eternos aprendizes de outras – as novas tecnologias. E se o mundo nunca esteve parado aos nossos pés, ele nunca girou tão depressa como agora, e tudo por culpa da Internet e de todas as tecnologias de comunicação que transformaram o nosso mundinho circunscrito e regional, caseirinho, num mundo globalizante onde a realidade, tal como a conhecíamos, deixou de existir, onde novas realidades despontam e a aprendizagem ao longo da vida é uma necessidade, pois dela depende, não apenas o futuro, mas o presente de uma sociedade que transtorna e desorienta os novos analfabetos digitais e os iletrados da comunicação.

Mas então, num momento em que tudo se transfigura e altera, haverá lugar para a leitura? E a literatura para a criança, fará sentido? E os livros, desaparecerão? E o ensino, dependerá de professores ou de mestres digitais? Seguramente que se continuasse, as questões multiplicar-se-iam, mas não é nossa intenção empreender o caminho das perguntas mas refletir sobre o tema que dá mote a este congresso: a leitura e a literatura para a Criança dentro do panorama da globalização.

Importa, antes de mais, definir alguns critérios relativamente à terminologia usada, começando pelo de LEITURA:

Etimologicamente, o vocábulo Ler vem do termo latino legere, que encerra três significados: o de soletrar, agrupar as letras em sílabas, formando palavras; o segundo tem como base o texto e relaciona-se com o ato de procurar sentidos no seu interior, e o terceiro vincula o leitor ao texto, retirando deste sentidos inimaginados pelo autor, roubando-lhe protagonismo, e assumindo-se o leitor como agente vivificador do texto criado pelo autor. Ou seja, sem o leitor, não existe texto! Ou melhor, o texto existe, a obra acontece, mas o que é facto é que nada realmente acontece se o texto não é lido e passada palavra sobre ele.

O conceito de Leitura também se tem modificado, consoante o tempo e o espaço em que se fala do ato de ler. No entanto, poderemos dizer que a leitura é a relação privilegiada que o leitor estabelece com o texto, independentemente do suporte em que este se fixou, e do tipo de texto em questão. Não é estranho falar-se da leitura de dados estatísticos, da leitura de um quadro de Picasso, da leitura de uma pauta de música, da leitura de uma fotografia, da leitura da expressão de alguém… Todas estas leituras encerram interpretações pessoais, sociais, de classe, culturais, étnicas, raciais, ideológicas, daí que, quando falamos de leitura, este tenha obrigatoriamente que ser um conceito muito abrangente.

Com as novas tecnologias e a mudança mundial – de uma realidade restrita ao conhecimento de múltiplas realidades – surgem novos conceitos, como o de Literacias. Não basta “saber ler e escrever e contar”, há que relacionar, inferir, miscelanizar conhecimentos e usá-los de forma eficaz para que possamos integrar-nos neste novo mundo constantemente em evolução. A globalização não vem retirar poder à leitura nem à literatura para a infância e juventude, vem, isso sim, acrescentar-lhe novas capacidades de dizer, de ilustrar, de mostrar, de editar, de difundir, de comparar, de criar, de ler, de escrever…

Mudam os suportes, as técnicas, os meios de distribuição e de divulgação. Mas a curiosidade permanece nas crianças e nos jovens, mesmo naqueles que dizem “ler é uma seca!” é vê-los debruçados sobre o computador, é observá-los de telefone em punho a lerem e a enviarem sms’s, é mirá-los nas redes sociais à conversa com gentes dos cantos mais inusitados do mundo. Poder-se-á dizer que isso não é leitura… pois, não o é no sentido de “ler um livro”, mas é certamente num sentido mais abrangente, talvez menos exigente… mas mais compensador porque se lê o que se quer, o que se escolhe, quando apetece, apenas porque sim. E dir-me-ão “ah, mas não podemos chamar a isso leitura!!!” Pois… talvez… ou seguramente que sim, a leitura é algo sério, dir-me-ão… mas eu questiono de novo: e porque terá de ser a leitura antónimo de divertimento, de prazer? E quem somos nós para saber o que é certo, ou se deve ler? Vejamos o que diz Umberto Eco a este respeito, numa crónica do New York Times, de 3 de janeiro de 2011:

“Mesmo nos atendo somente à tradição ocidental, quais são os livros que as pessoas deveriam ler? (…) Harold Bloom define o cânone literário como “a escolha de livros em nossas instituições de ensino”, e sugere que a verdadeira questão (…) é: “o que o indivíduo que ainda deseja ler deveria tentar ler, a essa altura da História? Observa que, na melhor das hipóteses, dentro do tempo de uma vida é possível ler somente uma pequena fração do grande número de escritores que viveram e trabalharam na Europa e nas Américas, sem contar aqueles de outras partes do mundo.”

E sobre a cultura, prossegue:

“Não faz muito tempo, fui a Paris para participar de uma conferência entre intelectuais europeus e chineses. Foi humilhante ver como nossos colegas chineses sabiam tudo sobre Immanuel Kant e Marcel Proust, sugerindo paralelos (que poderiam estar certos ou errados) entre Lao Tsé e Friedrich Nietzsche – enquanto a maioria dos europeus entre nós mal conseguia ir além de Confúcio, e muitas vezes com base somente em análises em segunda mão.”

E acrescenta, questionando:

“A sociedade e a cultura ocidentais foram influenciadas por Shakespeare, pela “Divina Comédia” de Dante, (…) por Homero, Virgílio e Sófocles. Mas será que somos influenciados por eles porque os lemos de fato em primeira mão?”

Talvez por se querer a todo o custo que a leitura seja uma coisa séria é que os jovens fogem dos livros! Mas frente a um instrumento que os pode catapultar para o outro lado do mundo, aí, seguramente eles leem! Se lhes pusermos à frente obras que os estimulem, lhes interessem, os cultivem, os façam saber mais ou, porque não, os façam pura e simplesmente divertir-se, a leitura passará a ser integrada no quotidiano das crianças e dos jovens. Porque a leitura, tal como as redes sociais ou as conversas telefónicas, é um hábito. E os hábitos, se forem bons, até se podem transformar em vícios, que daí não vem mal ao mundo, antes pelo contrário!

Quanto a nós, a globalização não é um problema mas sim uma mais-valia e um desafio: um desafio para os autores, um desafio para os professores, um desafio para os pais e encarregados de educação, enfim, um desafio para os adultos. Porque o contexto mudou, é necessário que o ensino se diversifique, que a Literatura não estagne e que as famílias embarquem sem medo neste comboio de alta velocidade da tecnologia. A ânsia de conhecimento é imparável, e nas crianças e nos jovens, maior ainda.

Cabe-nos a nós orientar esse conhecimento e acarinhar as mudanças, ou incorreremos no perigo das leituras fáceis – leia-se leituras sem qualidade. E sem obras de leitura de qualidade – as obras literárias – não há progresso, não há literacia, não há evolução. Hoje, é fácil escrever/editar, porque a Internet deixa o caminho aberto a todo e qualquer conteúdo, sem crivos de qualidade.

Teremos então de desenvolver padrões de exigência e de gosto literário nas crianças e nos jovens para que consigam distinguir o trigo do joio, as pérolas da vulgaridade. Há que usar e abusar das novas possibilidades de disseminação da cultura, dos autores, da tradição de cada povo, hoje suscetíveis de chegar onde há cem anos era inimaginável conseguir aportar.

A história dos povos sempre se fez do entrecruzar de histórias e de saberes de outros povos e culturas, chegados através dos viandantes, dos contadores de histórias, dos que vinham de outros mundos e de outros lugares distantes. Hoje, o território mais longínquo fica à distância de um click e o homem, como ser social por excelência, e comunicador nato, anseia ligar-se ao outro. Que a globalização não seja um obstáculo a abater mas uma ponte a atravessar, serenamente, em prol da evolução de todos nós, e, principalmente, das nossas crianças e jovens. Para que um dia eles possam acabar esta história como acabam todos os contos de encantar:

E a Leitura passou então a viver num Mundo globalizado, com todos os seus novos amigos: a Internet, o Computador, os Velhinhos Livros de Papel, os Novíssimos Livros Digitais, os Blogues, E-Tudo-o-Mais-que-Adiante-Vier. E todos juntos fizeram felizes para sempre os seres mais importantes do Planeta: as crianças!



WEB-BIBLIOGRAFIA

http://www.ucm.es/info/especulo/numero32/reflexoe.html

http://noticias.uol.com.br/blogs-colunas/colunas-do-new-york-times/umberto-eco/2011/01/03/na-era-da-globalizacao-o-que-deveriamos-ler.jhtm













quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Amizade peculiar

Àquela hora da manhã,
ninguém parecia importar-se
com a chuva miudinha
que molhava a alvorada
e passava passava passava
sem se importar com mais nada.
Porém, a gata Morena, desgostosa
por estar toda encharcada,
virou-se para o secador de cabelo
 e disse-lhe:
 -  Olha lá, custava-te muito secares-me o pêlo?
 -  Com certeza que não,
 minha linda, será um prazer,
 pois então!
E assim nasceu a amizade, entre
a gata Morena e o secador de cabelo
que mais tarde lhe disse
chamar-se Perestrelo.


Lurdes Pelarigo  - Novembro de 2010

quinta-feira, 20 de maio de 2010

CONVERSA DE BICHOS


Era uma vez um gato

Era uma vez um cão

O gato dizia MIAU MIAU

O cão respondia ÃO ÃO

Era uma vez um grilo

Era uma vez um porco

O grilo grilava CRI CRI

O porco grunhia RRHOM RRHOM

2



O gato MIAU MIAU

O cão ÃO ÃO

O grilo CRI CRI

O porco RRHOM RRHOM



3

Era uma vez uma galinha

Era uma vez um Chimpanzé

A galinha cacarejava COCOROCÓ

O chimpanzé ria IHIHIHIHIIH

Era uma vez um elefante

Era uma vez uma cabra

O elefante bramia UHHHAHH UHHHAHH

A cabra balia MÉHHHH MÉHHHH



4



O gato MIAU MIAU

O cão ÃO ÃO

O grilo CRI CRI

O porco RRHOM RRHOM

A galinha COCOROCÓ

O chimpamzé IHIHIHIHIIH

O elefante UHHHAHH UHHHAHH

A cabra MÉHHHH MÉHHHH



5

Era uma vez um uma cobra

Era uma vez um pato

A cobra sibilava SSSSSSSSS SSSSSSSSS

O pato grasnava QUÁ QUA´

Era uma vez um pintainho

Era uma vez um passarinho

Faziam ambos PIU PIU



6

O gato MIAU MIAU

O cão ÃO ÃO

O grilo CRI CRI

O porco RRHOM RRHOM

A galinha COCOROCÓ

O chimpanzé IHIHIHIHIIH

O elefante UHHHAHH UHHHAHH

A cabra MÉHHHH MÉHHHH

A cobra SSSSSSSSS SSSSSSSSS

O pato QUÁ QUA´

O pássaro e o pintainho PIU PIU





7

E naquela confusão

Em que ninguém se entendia

Chegou a vaca

MHÚÚÚÚH MHÚÚÚÚH

Acabem com a gritaria!

Vamos lá todos falar

De maneira delicada!

8

O gato MIAU MIAU

O cão ÃO ÃO

O grilo CRI CRI

O porco RRHOM RRHOM

A galinha COCOROCÓ

O chimpanzé IHIHIHIHIIH

O elefante UHHHAHH UHHHAHH

A cabra MÉHHHH MÉHHHH

A cobra SSSSSSSSS SSSSSSSSS

O pato QUÁ QUA´

O pássaro e o pintainho PIU PIU

A vaca MHÚÚÚÚH MHÚÚÚÚH


                                                                    Lurdes Pelarigo Abril/2010

CRIANÇA HOJE, ADULTO AMANHÃ - A IMPORTÂNCIA DO IMATERIAL NA CONSTRUÇÃO DO REAL

Comunicação apresentada na UTAD - Pólo de Chaves, em Maio de 2010, no III Congresso Internacional de Literatura Infantil - “(Re)leituras do fenómeno mítico-lendário no espaço ibero-americano”


1 – RECONHECIMENTO DA CRIANÇA ENQUANTO TAL

Quando, no decorrer do mestrado em Estudos do Texto, me decidi pelo tema da tese - A literatura para a Criança na Imprensa Portuguesa do séc. XIX - todos me questionavam: já havia literatura para a criança no séc. XIX? escrevia-se para crianças na imprensa portuguesa? A resposta era afirmativa e durante a pesquisa, encontrei mais de quarenta contos originais, de autores portugueses. Obviamente que a leitura das páginas dedicadas à criança era muitas vezes feita por adultos, os pequenos leitores eram poucos e pertenciam às classes abastadas, mas é importante perceber-se que, apesar da escolaridade ser diminuta e do número de pessoas capazes de ler ser manifestamente escasso, a literatura para a criança começava a vislumbrar a luz do dia, maioritariamente com traduções, mas também com textos originais de autores importantes no panorama literário português para a infância, entre os quais se destacavam Ana de Castro Osório, Alice Pestana, Maria Amália Vaz de Carvalho, Luís Filipe Leite e Henrique Marques Júnior.

Materializava-se, em texto literário, uma nova realidade: a aceitação de que a criança era diferente do adulto e requeria textos e histórias que a tivessem como destinatário reconhecido e público preferencial.



2 – IMPLEMENTAÇÃO DE UM SISTEMA EDUCATIVO MAIS ABRANGENTE: O DIREITO A SABER LER E ESCREVER

Longe vão os tempos desta realidade, quer em termos de escolarização, quer no que diz respeito à Literatura Infanto-Juvenil. O século XX foi o arauto de um sistema de ensino que se queria acessível e obrigatório para todos, mudança que trouxe, inevitavelmente, transformações familiares, geracionais e sociais importantes.

Apesar da liberalização da leitura e da escrita, a tradição oral continuou a fazer parte dos hábitos familiares, através das estórias contadas ao serão que, inúmeras vezes se materializavam em leituras posteriores, quando as letras deixavam de ser estranhas e era possível as crianças aventurarem-se no conhecimento de criaturas fantásticas e cenários de encantamento.

E assim se ia construindo o próprio percurso do imaginário infantil, sem pressas, e com a supervisão de um adulto, fosse ele pai, mãe, familiar, amigo ou educador.

O bibliotecário - se na terra havia Biblioteca - ou o Sr. Victor, das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, estavam atentos às nossas escolhas de livros e guiavam-nos nas indecisões dessa tarefa hercúlea de escolher APENAS dois ou três naquela imensidão apetecível de títulos. A Biblioteca ou a carrinha que aparecia quinzenalmente, no largo da Câmara Municipal ou da Igreja eram, elas próprias, a materialização da Terra dos Sonhos. E era de uma forma orientada, acompanhada e supervisionada que valores, conceitos, normas, regras sociais, tudo ia ganhando forma. As crianças dos séculos antes da era digital tinham o privilégio de poder brincar na rua, jogavam com os seus pares ao mata, à cabra-cega, à macaca, ao lenço, ao toca-e-foge. O recreio era o sítio onde mais se aprendia, porque, parafraseando Rubem Alves, “brincar é a coisa mais importante do ofício de ser criança”.

Nos séculos anteriores à era da ligação global em rede, as crianças inventavam jogos e brincadeiras para preencher o tempo livre: eram polícias e ladrões, cowboys, médicos, cabeleireiras, professoras, bombeiros e uma parafernália de outras coisas; imitavam aqueles que os surpreendiam ou maravilhavam, faziam o jogo do faz-de-conta e cresciam, desenvolviam-se brincando, interagindo com outras crianças e com os adultos.

Também a música e a tradição oral faziam parte da vida dessas crianças que cantavam canções de roda e recitavam de cor lenga-lengas, trava-línguas, poemas…

Nas eras anteriores à era digital, as crianças tinham tempo para brincar com os seus pares, para brincar sozinhas, para ir à escola, fazer os trabalhos de casa, ajudar nas tarefas que lhes eram dadas pelos familiares, visitar parentes, ler, inventar histórias, conversar com o amiguinho que vivia mesmo ali ao lado, com o vizinho e, coisa inaudita, as crianças tinham tempo para, simplesmente, não fazer nada! Havia tempo até para existir, permanecer, pasmar. E nenhum adulto ficava espantado por ver uma criança apenas a não fazer rigorosamente nada, porque os papéis estavam muito bem definidos na cabeça de todos: era tão importante fazer de tudo um pouco, como não fazer nada, para se crescer. O jogo, a brincadeira, os silêncios, a algazarra, o respeito pelos mais velhos e pelos seus pares, os livros e as estórias ao serão faziam parte da rotina das crianças do século XX.

Mas em princípios dos anos 50, algo alterou profundamente este estado de coisas.



3 – UMA CAIXA PRETA NA SALA

A grande revolução nos hábitos e costumes familiares e sociais surge com a chegada da Televisão. O antigo rádio é suplantado pelo poder da imagem e surge um novo factor de distinção/discriminação social: há as famílias endinheiradas que têm uma televisão na sala da própria casa, e as famílias que vêem televisão nos cafés e nos clubes locais, por manifesta escassez de recursos monetários para usufruírem daquele novo luxo. Mas as histórias continuam a entrar na vida das pessoas, das crianças, agora usando mais um suporte: a televisão.

Com o passar dos anos, o preço dos aparelhos de televisão vai baixando e “comprar a caixa mágica” começa a fazer parte dos sonhos das famílias. Não demora muito tempo para que este sonho se cumpra e pouco depois – uma geração mais tarde – a televisão ocupa o lugar de “rainha do lar”. A televisão impõe, dita regras, reina, lança modas, transforma comportamentos, linguagem e modos de vida.

A ditadura da caixa mágica escraviza a família: quando se chega a casa, liga-se a televisão por hábito, por rotina, independentemente da qualidade ou do interesse do programa. E surge uma nova batalha pelo poder: quem detém o comando, quem escolhe o programa e o canal a ver é o “rei da casa”!

Neste processo de mudança, a televisão começa a ocupar o lugar dos pais, dos avós, da ama, e hoje sabe-se que as crianças passam mais horas do que deveriam frente ao televisor, na maior parte dos casos sem qualquer supervisão de um adulto. Nos infantários e nos ATL’s, um estudo recente provou que o tempo que as crianças em fase pré-escolar passam a ver televisão é excessivo.

Aos poucos, a televisão transforma-se na “ama electrónica” das crianças, com todos os prejuízos e perigos que isso envolve. É indiscutível que o adulto tem de filtrar a informação que chega à criança, tem de a acompanhar também aqui, tal como faz quando ela começa a dar os primeiros passos, sozinha.



4 – UMA NOVA ALVORADA: OS COMPUTADORES PESSOAIS E A REDE

Novas tecnologias e “gadjets” aparecem diariamente desde que se criaram os computadores pessoais (PC) e os portáteis ou noteboks. Primeiro, foi o espanto: parecia, nos seus primórdios, que o aparelho viria substituir as velhinhas máquinas de escrever, mas depressa se entendeu que as suas potencialidades eram imensas. Imagine-se que se podia falar, em tempo real, com pessoas que estavam na outra metade do mundo!

Este era mais um conto de fadas, um conto de fadas da era digital. E todos ficaram encantados, siderados, adultos e crianças. Havia que começar a dar uso a estas novas ferramentas da era digital e a usufruir da rede.

É precisamente aqui que começa a grande alteração social e relacional: a sociedade, a escola e as famílias não voltarão a ser as mesmas, depois do aparecimento da Internet. Os adultos, encantados com tanta tecnologia e capacidade de comunicação, tentam adaptar-se. As crianças que hoje têm 10, 12 anos já não têm que se adaptar a nada, pois desde que se lembram de ser gente que a comunicação à distância, os jogos virtuais e os amigos que só existem no espaço cibernético são, para eles, uma realidade palpável. A estas crianças, já poucas histórias se contam ao serão, pois os pais não têm tempo para as partilhar, as crianças estão ocupadas durante grande parte do dia, e mesmo os seus pretensos “ tempos livres” de livres nada têm, pois são sistematicamente preenchidos por actividades em que os adultos os inscrevem para não estarem “ sem fazer nada”. Esquecem-se estes adultos que os tempos de repouso, de silêncio, de preguiça mesmo são imprescindíveis para o reequilíbrio do corpo, da mente e do espírito e que são parte integrante do desenvolvimento da criança.

As crianças da era digital andam assoberbadas com trabalho, estão fora de casa tantas horas como um adulto e não têm tempo para brincar a seu bel-prazer, nem para crescerem ao seu ritmo.

As crianças da era digital deixaram de poder andar na rua sozinhas, não lhes é permitido brincar conforme lhes apetece nem onde parece ser mais divertido.

As crianças da era digital, que já passavam demasiado tempo frente a um televisor, têm agora, como alternativa, um computador e a possibilidade de se catapultarem para um outro espaço, todo ele imaginário, em que se constituem como meros receptáculos de informação avulsa, não regulada nem orientada.

Quando as crianças são deixadas sozinhas frente a um qualquer aparelho que lhes passa informação indiscriminada, aleatória, descontextualizada, desadequada ao seu estádio de conhecimento, ao seu desenvolvimento, ao seu nível etário, o acúmulo de informação não lhe traz quaisquer benefícios. Cabe aos adultos – pais e/ou educadores - cuidarem das crianças, estarem ali ao lado para desconstruir, para explicar, para dizer “Não!” sempre que for preciso. Os adultos não podem demitir-se do seu papel de orientadores, de guias e de modelos a seguir, apesar de todos os medos e inseguranças.

O medo assola os pais e os educadores – medo dos raptos, medo das agressões sistemáticas e gratuitas, medo dos assaltos, medo dos pedófilos, medo dos violadores, medo da violência verbal, física, psicológica, mental – e o medo nunca é bom conselheiro. Por medo de deixar as crianças ir para a rua brincar, apostam na sua permanência frente a um aparelho, em diálogo de surdos. O medo transmite-se, pega-se, e as crianças da era da comunicação em rede estão presas numa teia de onde lhes é impossível sair e em que um simples esbracejar é considerado perigoso, para não dizer revolucionário. Por medos vários, os adultos balançam entre dois extremos igualmente perigosos: o da permissividade excessiva, desregrada, e o da repressão castradora e irracional. Nenhuma destas atitudes é susceptível de favorecer um desenvolvimento harmonioso da criança.

Mas não nos iludamos: a Internet não é um mal, os computadores não são demoníacos, a televisão não aliena as crianças! O uso de todas estas novidades tecnológicas e digitais é desejável, agora… tem de se tratar de uso orientado, não de uso ao abandono.



5 – O REGRESSO DOS CONTOS E DOS CONTADORES, APESAR DE TODAS AS NOVAS TECNOLOGIAS

Dizia-se, na passagem do ano 1999 para 2000, que o mundo iria acabar. E, de certa forma, esse mundo acabou mesmo, pois no século XXI outras realidades e mais virtualidades se instalaram na vida de todos os dias dos adultos, das famílias, das escolas, das crianças, das sociedades. A escolaridade, obrigatória para todos nos países ditos civilizados, não satisfaz os jovens, conduzindo ao abandono escolar e a aprendizagem, longe de ser encarada como uma oportunidade, veste a máscara da tortura, de algo que não os motiva nem os faz felizes.

Os países correm então a modificar pontualmente os sistemas de ensino, a facilitar formas de aceder à educação e à cultura que não sejam tão mal-amadas por aqueles a quem, supostamente, se dirigem. São os cursos das novas oportunidades, que pretendem dar, a quem desistiu, a capacidade de recuperar o tempo e os ensinamentos perdidos. E isto porque estudos levados a cabo demonstram que o futuro e o sucesso dos países depende directamente do grau de preparação dos seus naturais, da sua capacidade de aprendizagem, da produção de que são capazes, do empenho e da criatividade de todos e de cada um. Estamos a anos-luz da época em que se aprendia durante X tempo, se conseguia um emprego, e se mantinha esse mesmo emprego até ao fim. A aprendizagem ao longo da vida faz hoje jus ao adágio “aprender até morrer”.

Com o dealbar das novas tecnologias, da informação ao segundo, da guerra em directo nas televisões, e com a capacidade de comunicarmos, em tempo real, com alguém que está a milhares de quilómetros, para lá de mares e oceanos, as nossas realidades pessoais e as situações particulares dos países, passaram a fazer parte de uma realidade muito mais abrangente: a constatação de que estamos todos interligados!

Nunca se falou tanto como hoje no “superior interesse da criança”. E se todos – pais, educadores, professores, psicólogos, governos – concordam com essa premissa, o mesmo não poderá ser afirmado quanto à forma como se deve zelar para que esse “superior interesse da criança” seja alcançado.

Diz-se que as crianças são o futuro, mas não se pode esperar que seja capaz de gerar futuro quem não tem presente. Não basta disponibilizar um sistema de ensino obrigatório para todos: é necessário facilitar o acesso a condições de vida, de saúde, de habitação, de alimentação capazes de suscitarem no indivíduo adulto a apetência para continuar a aprender e a melhorar, e nas crianças a fome de conhecer.

As crianças da era digital, da Web 2.0 e da realidade virtual têm, consignados na lei, direitos específicos, que facilmente são esteriotipados e esquecidos. E não nos enganemos: a criança de hoje não é apenas mais uma criança portuguesa, francesa, brasileira, chinesa… As crianças de hoje pertencem ao Mundo, são seres globais na medida em que pertencem a uma nova era em que as fronteiras que nos separam são cada vez mais imateriais e ultrapassáveis. E às crianças da era virtual é preciso que não lhes falte o chão. Então, perguntemo-nos: de que precisam estas crianças do séc. XXI? Como as devemos educar, de que instrumentos terão de se servir, que ferramentas terão de manusear para se sentirem seres completos, parte de uma realidade global cada vez mais exigente, que se não compadece com seres menos apetrechados para a vida?

Está mais que provado que os contos e personagens, heróis e anti-heróis, fadas, gnomos, duendes, bruxas e feiticeiros, animais personificados, fenómenos impossíveis, acontecimentos extraordinários, seres impensáveis e imateriais continuam a assumir hoje um papel primordial no desenvolvimento integral da criança. Os contos, sejam eles de fadas ou de qualquer outro cariz, tratam de assuntos ancestrais e intemporais, que fazem parte da condição humana e que ajudam a resolver os conflitos internos e as situações difíceis que as crianças enfrentam durante o seu crescimento. A solidão, o desespero, a alegria, o abandono, a angústia, a tragédia, os sentimentos de derrota e de vitória, a perda são comuns a todos os mortais e o simples facto de se ouvir falar de uma situação semelhante numa história, dá alento à criança para enfrentar situações similares que esteja a vivenciar ou que, pertencendo já ao passado, ainda não tenham sido resolvidas no seu íntimo. Perceber que o que lhe aconteceu ou se está a passar consigo já foi sentido por uma personagem de uma história dá-lhe o acalento de não se sentir mais tão só como até aí. E os contos são sempre fontes inesgotáveis de esperança, pois o herói ou a heroína são recompensados e vencem no final. Mas a recompensa não é fugaz, eterniza-se na fórmula final do “viveram felizes para sempre”. Também não se alcança a felicidade eterna sem passar por provas difíceis, trabalhos incomensuravelmente maiores do que, aparentemente, a própria personagem. A astúcia, a inteligência, o trabalho árduo e alguma ajuda de seres fantásticos e de objectos mágicos, contudo, conseguem combinar-se para que o resultado almejado seja uma realidade. Os contos, são, afinal, um manancial de esperança, por isso são tão importantes para a construção da personalidade da criança e o seu desenvolvimento.

A ficção, a imaterialidade, o voo, as fantásticas capacidades físicas, psicológicas, divinatórias, sempre fizeram as delícias de crianças e adultos.

A capacidade de voar, de se deslocar através do ar, de se despregar do chão, de se desmaterializar e de conseguir fazer tudo, sem barreiras físicas, foi a pedra de toque de grandes personagens imortalizadas na BD, na Literatura e no Cinema: o Super-Homem, o Homem-Aranha, Peter Pan e, recentemente, as personagens de Avatar.

Neste século de uma forte realidade virtual, já não é só a criança que pode aventurar-se em territórios do mundo imaginário: são os adultos que o procuram também, numa ânsia de transformar um mundo cada vez mais perturbado e terreno, num outro em que, apesar de todos os desaires e dificuldades, haja uma capacidade intrínseca de chegar aos sonhos, trazendo deles uma centelha possível de se materializar na construção de um mundo melhor.

Voltemos então aos contos: que papel têm os contos e os heróis, a imagética e a simbologia na construção integral da criança?

Falemos também de Internet: até que ponto é benéfica? Qual a dose diária recomendada? Qual o acompanhamento necessário para a exploração destas realidades virtuais pelos mais novos?

E a leitura? E a literacia da comunicação? E a literacia da informação? E…?

Poderíamos continuar a formular perguntas, mas ficar-nos-emos por aqui. Defendemos que quanto maior for a importância dada ao jogo, aos aspectos lúdicos da aprendizagem e da sociabilização da criança, mais apta ela estará para enfrentar a realidade, enquanto adulta. Talvez até a capacidade de brincar seja directamente proporcional à capacidade de interagir e de intervir, de mudar e de transformar o mundo.

Os contos, as estórias, fazem parte da exercitação da memória, do imaginário libertador e construtor da infância.

“ (…) a mais antiga tradição filosófica do mundo ocidental afirma que o nosso destino depende da nossa capacidade e vontade de recuperar memórias perdidas. Na linha que vai de Platão a Freud, o evento libertador exige que sejamos capazes de dar nomes ao passado. A lembrança é uma experiência transfiguradora e revolucionária.”

in, Rubem Alves, Conversas com quem gosta de ensinar, Colecção Em Foco, Asa, Porto, 2003, p. 31.


Lurdes Pelarigo