A noite esfriara e a lareira já
estava acesa em casa da avó Maria. Constança e Serafim tinham-se aninhado aos
pés da avó, à espera que ela começasse a desfiar as suas inúmeras histórias.
Quando os pais tinham mais trabalho, ou precisavam de estar um pouco sozinhos
para “ recarregar baterias” como eles diziam, ou mesmo só para namorar um
pouco, a avó Maria ficava com os dois netos e era certo e sabido que, quando
voltassem a casa, as suas cabecinhas iriam repletas de sonhos e ideias para
lhes alegrar os dias e inspirar desenhos e histórias, que também eles já gostavam
de inventar.
A avó era uma septuagenária de
pouco mais de metro e meio que não deixava os cabelos embranquecer, nem os
olhos, de um sereno castanho-mel, perder o brilho. A sua gargalhada ecoava pela
casa fora por dá cá aquela palha, e os netos estavam convencidos que ela achara
no riso o elixir da eterna juventude.
Constança e Serafim eram os mais
novos da família e eram ainda demasiado pequenos para pensar profundamente nas
razões que levavam a avó a ser como era: bonita, risonha, bem disposta,
excelente companheira de brincadeiras, óptima cozinheira e, acima de tudo,
exímia contadora de histórias. Ambos estavam sempre desejosos de ir passar uns
dias com os avós, porque os dias com ali passavam rápidos que nem foguetões a
jacto, e as noites eram sempre de encantar. Além disso, o avô Manel, levava-os a passear pelos sítios das histórias
que a avó gostava de contar. Era assim como um GPS com pernas e que lhes falava
numa voz calorosa, sem nunca se enganar nem ter que recalcular os percursos.
A coisa passava-se quase sempre
da mesma maneira: à noite, enquanto a avó se instalava na cadeira alentejana
para dar início ao serão, o avô Manel sentava-se na sua cadeira de baloiço, puxava
o jornal para fazer as palavras cruzadas ou para ler alguma coisa que ainda não
tinha tido tempo de ver com sossego, e nem parecia lá estar. Parecia não estar…
mas estava, e bem atento! Constança e Serafim tinham-lhe pedido uma única vez
se os podia levar a ver um sítio de que a avó falara nas suas “historietas para
netos e netas”, como ela dizia. Ainda se lembravam da lenda e tudo: A Lenda da
Moura Salúquia. O avô ouviu-os e disse:
- Ahhhh… com que então gostavam
de ir às terras da Moura… Pode ser que se arranje alguma coisa. Vão lá dormir
que eu vou pensar no vosso caso.
Claro que nem um nem outro
suspeitavam do que os aguardaria na manhã seguinte. Sim, porque uma coisa é uma
criança dizer ao avô que gostava de ver os lugares onde se passara uma história
que tinham ouvido, e outra, muito diferente, é acordar no dia seguinte e ver um
farnel arranjado, em cima da mesa grande da cozinha, e encontrar os avós, todos
divertidos, a comunicarem-lhes que os iam levar a Moura, para visitarem as
terras da moura Salúquia. Só aí é que eles perceberam que os adultos, às vezes,
até nos podem surpreender.
Desde então, já sabiam: a cada
serão de contos correspondia uma viagem. E isso era o que mais lhes agradava: a
história ia dormir com eles, e depois acompanhava-os nos mais inusitados
passeios por esse Portugal fora.
Constança, no alto dos seus treze
anos, e Serafim, nos seus nove, encantavam-se com aquela dupla que lhes saíra
em sorte: a avó Maria, contadora de histórias, e o avô Manel, caminheiro
andante dos mundos físicos das histórias encantadas.
Tejo, o rafeiro que eles
conheciam desde sempre, chegara da sua última saída nocturna e, abanando o
rabo, refastelou-se no cesto de verga que lhe servia de cama, aninhando-se na
manta de retalhos de lã, aos quadradinhos multicolores, que a avó tecera.
Pousou o focinho na berma do cesto e olhou para a avó, assim como quem diz “ já
cá estou, pode começar o serão de contos!”
- Pronto, avó, podemos começar,
já cá estamos todos!
- Hum… não sei se hoje me
apetece… - disse a avó, franzindo a testa e arrebitando o nariz.
- Ó avó…CONTA LÁ!!! – pediram os
dois em uníssono.
A avó deu uma das suas
gargalhadas cristalinas e transfigurou-se: o seu metro e meio de altura
avolumava-se sempre que ela começava a narrar, os olhos ora adocicavam ora
endureciam, consoante a história e a personagem, e a voz… AH, a voz…! A voz da
avó, quando ela os levava para a Terra Onde Tudo é Possível, a Terra das
Histórias e dos Contos, não era uma voz, eram mil vozes, profundas ou
estridentes, meiguinhas ou severas, risonhas ou tristes… Enfim, a voz da avó
era indescritível e ma-ra-vi-lho-sa!
Respirou um pouco mais fundo e
começou, de mansinho.
- Todas as semanas se reuniam, do
lado de lá, os Seres Mágicos.
- Ó avó, o que é o lado de lá? –
indagou, curioso, o Serafim.
- Ora, mano, o lado de lá é
Almada, não é avó? Diz-se “o lado de lá”, ou “a outra banda” porque se tem de
atravessar a Ponte para se lá chegar.
- É isso mesmo, minha querida.
Mas não é só pela ponte que se chega ao lado sul, pode-se ir também de barco.
Eu fui lá muitas vezes, de cacilheiro, e ainda hoje a travessia para o lado de
lá se faz usando o Tejo como estrada. Vocês nem imaginam os milhares de pessoas
que fazem essa travessia diariamente, para trabalhar, estudar ou apenas
passear. Mas dizia eu…
Todas as semanas se reuniam, do
lado de lá, os Seres Mágicos. O local ia variando entre Cacilhas e Porto
Brandão, Sobreda, Almada, Caparica, enfim, toda a zona era ideal para aqueles
encontros de gente tão especial.
Quando eram os seres das águas os
anfitriões, tinham de se encontrar pertinho das águas do Tejo ou das do Oceano
Atlântico.
Mas se eram os seres da Terra que
recebiam os amigos, sabem qual era o local privilegiado? A Mata dos Medos.
- A Mata dos Medos, avó? Porque é
que se chama assim? – quis saber a Constança.
- Não interrompas, mana, deixa
ouvir a avó!
- Deixa, Serafim, tu também deves
querer saber por que razão aquela mata tem esse nome, não queres?
- Sim, claro! – replicou ele,
esbugalhando mais ainda os olhitos da cor da mata.
- Como vocês sabem, as pessoas
têm medo de muitas coisas que não conhecem. Têm medo do escuro, têm medo dos
barulhos diferentes, têm medo das sombras, enfim, são umas medrosas, é o que é!
O que elas não sabem é que essas coisas de que têm tanto medo são coisas
normais, comuns, na casa dos Seres Mágicos. Ora, como vocês muito bem sabem, os
lugares perto das águas, dos rios, das matas, das florestas, são nem mais nem
menos que os lares dos seres encantados e a Terra Onde Tudo Pode Acontecer. E é
só por isso que acontece.
- OHHHHHHHHHHH… E quando se passa
esta história, avó?
- Ah, pois é, eu não comecei a
contar com Era uma vez, porque desta
vez a história passa-se num tempo suspenso entre o tempo das histórias e o
tempo sem elas, no passado, mas também no presente, e até no futuro, para além
de tudo aquilo a que chamamos Tempo.
- Isso é complicado, avó…
- Só parece que é complicado, mas
não é: o que vocês precisam perceber é que os Seres Mágicos são eternos, se os
tratarmos com respeito, mas que são também muito frágeis e que, se não tivermos
cuidado, podemos perdê-los para sempre! Vocês já imaginaram o que seria de nós
todos sem aquelas criaturas que nos oferecem o poder de sonhar, de imaginar?
- Eu nem quero imaginar…
- Nem eu! Só de pensar nisso até
fico arrepiada, cheia de “pele-de-galinha”, olha aqui! – ripostou a Constança,
mostrando o braço todo eriçado ao irmão.
- Adiante, - continuou a avó – vamos lá
então ao conto. Naquela ocasião, o local escolhido para a reunião tinha sido precisamente
a Mata dos Medos, porque calhava aos elementos da natureza florestal a
organização. Sítios onde há muitas árvores e muito verde são povoados pelos
seres elementais, isto é, os seres que
fazem parte daqueles sítios, e na Mata dos Medos há inúmeros Elfos e Duendes,
Dríades e, obviamente, Fadas, só para falar nos mais importantes.
Festejavam eles, nesse dia, o aniversário
da mais velha de todas as Dríades, e a ocasião era da maior importância. Por
isso, na zona mais recôndita da Mata dos Medos, onde os Humanos raramente iam,
as fadas andavam numa azáfama a organizar tudo: os raios de sol, as poças de água, os arco-íris duplos, as
nuvens-de-algodão-doce e as nuvens-carneirinho, a brisa-da-mata e o vento-bailarino,
a chuva miudinha e a neve-que-só-vinha-de-visita ,
as bolinhas de azevinho, as flores-às-cores e todos os restantes seres dos cinco elementos da Natureza:
Terra, Ar, Água, Fogo e Metal. Nas
reuniões da Natureza, se faltar algum destes elementos, é como se faltasse um
filho ou um neto numa casa de família numa noite de consoada.
- Oh, avó, desculpa lá, mas vais ter de me
explicar o que são as Dríades, porque eu não sei… - pediu, embaraçado, o
Serafim.
- Ah, pois é, isso é muito importante! As Dríades
são os seres protetores das árvores, por isso habitam nelas. São muito idosos e
zangam-se facilmente se percebem que as suas protegidas estão a ser maltratadas,
por isso não gostam de lenhadores.
. Quer dizer, então que quando cortamos lenha
para a nossa lareira estamos a tirar as Dríades das suas casas?
- Não, Serafim, porque há árvores que têm de
ser cortadas mesmo, para que a floresta também não se aproprie de todo o
planeta. Não podemos é cortar só porque
nos apetece, tem de haver um equilíbrio, entendes? O que devemos fazer, sempre
que precisamos de cortar uma árvore, ou mesmo só uns ramos, é pedir licença à
Natureza e às Dríades, prometendo plantar uma nova árvores por cada uma que
tivermos que cortar. Assim, a Natureza fica em paz e as Dríades não se zangam
nem entristecem.
- Ok, avó. Continua.
- Os Elfos, como gostavam de fazer cara feia a
toda a gente, que é como quem diz, aos intrusos, tinham ficado de vigia e atarefavam-se
a verificar se o solo estava bem protegido pelas ervas e pelas flores-do-mato,
e se as pedras estavam engalanadas de musgo e líquens. Tudo tinha que indicar
como estavam felizes por estarem juntos a festejar a mais idosa de todas as
Dríades que, por sinal, tinha um nome bem bonito: Dríade Verdantina. Tinham-lhe
chamado assim porque a sua copa era de um verde-esmeralda lindíssimo e as suas
folhas faziam lembrar o mar, naqueles dias em que as algas dançam mais à
superfície, transformando-o num festim verdejante. Os Elfos são especialistas
em plantar cogumelos, e tinham desenvolvido um novo, só para homenagear a
aniversariante.
Por sua vez, os Duendes, brincalhões como só
eles sabem ser, estavam alerta também, para o caso de alguém se aventurar para
aqueles lados da mata sem ser convidado. Caso isso acontecesse, os Duendes
fariam esse intruso perder-se por lá, pelo menos por uns tempinhos, até que
lhes apetecesse resgatá-lo. Nenhum humano poderia estragar aquela
celebração.
- Ui, já estou com medo de ir até á Mata dos
Medos, parece mesmo perigosa.
- Não, Serafim, a mata só é perigosa para quem
a maltrata. E se um dia, por acaso, te perderes no campo, chama com a tua mente
um Duende e faz-lhe uma oferta: uma pedrinha, uma fruta, uma flor… Verás como
depressa encontras o teu caminho de novo. Os Duendes são como as crianças
traquinas, gostam de brincar. Não é, Constança?
- Sim, sim. Lembras-te quando eu me perdi
quando fomos apanhar pinhas para a lareira, aqui bem pertinho da casa, Serafim?
- Sim, íamos os dois, e tu não tiveste medo nenhum… Agachaste-te, apanhaste
uma pedrita com uns veios coloridos e começaste a cantarolar
“Vem cá meu amigo,
meu amigo duende
Chega-te aqui
Toma, um presente!” -
trauteou o Serafim.
– Agora percebo tudo… tu não tiveste medo porque já sabias
os truques que a avó te tinha ensinado…!!!
- Claro, sou mais velha, sei mais coisas que tu. Mas se estiveres
atento, rapidinho vais aprender também.
- Melhor ainda do que
aprender é acreditar que se pode aprender , estar sempre alerta porque, quando
menos se espera, zutttttt! Lá vem mais uma coisa nova, ou mesmo, quem sabe,
mais uma coisa mágica!!! Não é o que tu sempre dizes, avó?
- É, sim, Serafim. Estou orgulhosa de ti! Estás a perceber que
para entrar no mundo dos sonhos e dos encantos é preciso acreditar nele. Mas
vamos lá continuar.
Quando estava tudo preparado, e todos os amigos nos seus postos,
deu-se início à reunião para homenagear a mais velha Dríade, a Verdantina. A Fada Fadinha, que era a mais nova de todas
as fadas, adiantou-se e começou, com a sua voz melodiosa:
- Hoje completas mais um aniversário, Verdantina, e queremos que
nos digas qual é o teu maior desejo, para to podermos satisfazer.
Verdantina sorriu com o seu sorriso e respondeu:
- Obrigada, Fada Fadinha, que falas por todos os seres da nossa
casa maior, A Mata dos Medos. Para mim, não quero nada, pois a minha já muito
longa vida encheu-me de acontecimentos bons, umas vezes, maus, outras, mas o
certo é que a minha tem sido repleta, pois tenho o que de melhor há neste
mundo: amigos.
- Mas Verdantina, nós queríamos mesmo muito homenagear-te com esta
festa e com a concessão de um desejo, ou dois, ou mesmo três… mais é não
podemos, como sabes, porque as Fadas só conseguem satisfazer três das nossas
maiores vontades.
- Muito bem, tenho um pedido que te quero fazer, Fada Fadinha.
Tenho guardado um segredo nestes útimos anos.
-AHHHHHHHHHHHHHH!!!! – espantaram-se todos.
- É verdade, meus amiguinhos. Já vai para três anos que recebo uma
visita silenciosa, uma criança, pouco maior do que um arbusto quando começa a
crescer. No tempo dos Humanos, aquela criança, o Bernardo, deve ter uns anos
poucochinhos, aí uns onze. E vem até aqui quase todos os meses, pelo menos duas
vezes, normalmente ao sábado.
- Mas como é que ele consegue vir até aqui, a esta parte tão densa
da mata onde muitos adultos se não aventuram?
- O Bernardo é um explorador, gosta de se embrenhar no bosque e de
descobrir as plantas, os insectos, os pássaros. É um menino muito só. Os pais
estão separados e ele aparece por aqui sempre que vem passar o fim-de-semana
com o pai, que mora ali para os lados da praia. Uma das vezes que ele se
encostou, já cansado, ao meu tronco, li-lhe os pensamentos e sabem o que é que
eu vi?
- Não, conta lá, Verdantina – pediu o corvo.
-Vi que, àquela criança, ninguém teve tempo para contar uma
história.
- Impossível!!! Como é que isso pode ser?
- Não sei… mas é verdade verdadinha. Por isso, o Bernardo é um
menino triste, porque não sabe o que há-de fazer com a chama da imaginação. É
preciso que se lhe conte ao menos um conto, para que ele possa despertar para o
nosso mundo mágico.
- E como vamos nós conseguir que alguém lhe conte um conto,
Verdantina?
- Na próxima vez que o Bernardo aqui vier, a Fada do Tempo irá
fazê-lo ficar despreocupado com as horas para que ele possa relaxar. Tu, Duende
Safadinho, irás trazê-lo, sem que ele dê conta, até aqui, e tu, Fada Fadinha,
ficas encarregue de lhe contar a sua primeira história.
- Mas que grande responsabilidade, Verdantina! E se o Bernardo não
gostar da história que eu lhe contar?
- Isso é inviável, porque tu és a melhor contadora de histórias da
Mata dos Medos.
- Sim, sim, Fada Fadinha, ninguém melhor que tu faz de contadora!
- Muito bem, fica então assim combinado.
Verdantina, verás o teu desejo realizado.- prometeu, adejando as suas asas da
cor da água da chuva, a Fada Fadinha. – Mas vamos ter de combinar um sinal para
que nós saibamos, quando entrar o Bernardo na Mata, que é dele que se trata.
Depois de pensar um pouco, a Dríade informou:
- Estejam atentos à canção dos meus ramos e ouvirão: Às 5 da manhã, em Almadan!!! Quando isto
ouvirem, já sabem que é o Bernardo que está a chegar à nossa mata.
- AH… fantástico, lembraste-te da lenda de Almada? – perguntou o Arco-íris.
- Sim, e podia lembrar-me de muitas mais lendas desta zona, mas
acho que esses sons são calmos e os meus ramos não se cansarão muito para
entoarem essa canção:
"Às 5 da manhã, em Almadan!!! Às 5 da
manhã, em Almadan !!! Às 5 da manhã, em Almadan!!!"
Todos concordaram e, como já se estava a fazer tarde, tiveram que
dar a reunião por acabada, pois cada um deles tinha de ir à sua vidinha de
todos os dias, que a Natureza, para ser assim natural, não tem muito tempo para
descansar.
Passaram uns dias e, num sábado em que os Humanos festejavam o Dia
da Criança, Bernardo dirigiu-se, como era seu costume, à Mata dos Medos. Aquele
era um sítio que lhe fazia bem, sem ele saber explicar porquê. Gostava de se
embrenhar pelo mato dentro e ver as coisas da terra e as coisas do ar.
Encontrava sempre coisas e cores diferentes e por vezes até pensava que elas se
vestiam de gala só para ele ver. Ele chamava à Mata dos Medos a sua Mata dos
Segredos, pois percebia que ela mudava.
Daquela vez, Bernardo começou a ouvir um rumorejar de árvore que
parecia chamá-lo. Não distinguia
palavras, mas aquele era um bulício que ele jamais ouvira.
Às 5 da manhã, em Almadan!!! Às 5 da
manhã, em Almadan!!! Às 5 da manhã, em Almadan!!!
Todos os seres da floresta acorreram ao chamamento da Dreíde
Verdantina e Bernardo caminhou, caminhou, até que se perdeu – todos nós sabemos
bem porquê – e, por fim, cansado, encostou-se ao tronco da casa de Verdantina e
adormeceu.
Então, a Fada Fadinha, a melhor contadora de histórias da Mata dos
Medos, começou a soprar-lhe ao ouvido esta história:
O DESCANSO
DO PAI NATAL
Mel era o
nome por que a menina gostava de ser chamada. Tinham-lhe dito que o seu nome,
Melissa, fora emprestado de um arbusto bonito, com cujas folhas se podia fazer
um chá que acalmava os nervos e a barriga, o chá de erva-cidreira.
Explicara-lhe
ainda a mãe - que era dessas pessoas que pensavam que o conhecimento não ocupa
lugar e que, por mais pequenas que as crianças fossem, elas eram apenas
pequenas de tamanho e não de cabecinha -
que o seu nome, Melissa, tinha a origem no nome da ninfa grega, Mellona,
protectora das abelhas.
- Sabes, Melissa, ainda hoje há uma grande
amizade entre a planta do chá, a erva-cidreira, e as abelhinhas. Em cada
colmeia só pode existir uma abelha-mestra, que também se pode chamar
abelha-rainha, e se, na primavera, nascerem várias rainhas na mesma colmeia, o
enxame tem de se dividir, formando enxames menores, cada um com a sua própria
abelha-rainha, que parte em busca de um novo sítio para morar.
Os povos
antigos sabiam que o cheiro da melissa ou erva-cidreira atraía as abelhas, por
isso, para as ajudarem a não andar muito tempo à procura de uma nova casa,
punham folhas frescas trituradas em colmeias vazias para atrair os enxames
novos. Percebeste, Melissa?
- Hummmm…
percebi, mas tudo não! O que é uma ninfa, mãe?
- Uma ninfa é um ser mágico, alado, que vive
em sítios maravilhosos como os rios, os lagos ou as florestas.
- Só podem viver aí? E o que quer dizer
“alado”?
- Quando gostam muito de um objecto, as
ninfas também podem fazer dele a sua casa. As ninfas e os pássaros são seres
alados, isto é, seres com asas, entendes Melissa?
- Ahhhhhh….! Já percebi! Elas podem
deslocar-se rapidamente de um lado para o outro, não é mãe?
- Sim, e além disso estão sempre alegres,
porque protegem a natureza e as pessoas, tal como as fadas, de quem ainda são
parentes. Até há quem diga que as ninfas são, nem mais nem menos, do que
fadas-criança.
- Obrigada, mãe, por me contares estas coisas
todas fantásticas. Tu já viste muitas ninfas? E fadas?
A mãe pensou durante um bocadinho e
respondeu:
- Como são muito pequeninas, menos que
microscópicas, as ninfas não se conseguem ver muitas vezes, mas podemos
senti-las, isso podemos! E eu já as senti muitas e muitas vezes.
- E como é que se sabe que se está a sentir
uma ninfa??? – perguntou a Melissa, de olhos arregalados.
A mãe apertou-lhe mais a luva de um dedo só,
destinado ao polegar, debaixo da qual se encontrava, quentinha como uma
mini-lareira, a sua mãozita de 5 anos. Depois, agachou-se, pôs a sua cara
sorridente ao mesmo nível da da Melissa e respondeu:
- Tu só me fazes perguntas difíceis… sabes
que as mães nem sempre sabem explicar todas as coisas. Mas eu acho que se sabe
que anda por aí uma ninfa a esvoaçar quando as perguntas que temos no nosso
coração são respondidas como que num sopro, assim, sem mais nem menos.
Melissa acenou com a cabeça através do gorro
vermelho, igual às luvas de um dedo só.
E pôs-se aos pulinhos, enquanto o caminho
para a pré-primária ia encurtando cada vez mais.
A mãe tinha daquelas coisas, gostava de a
levar a pé, deixando o carro na garagem, porque dizia que era muito mais
saudável andar a pé do que sempre de automóvel. Mel concordava, e ia pensando
como era bom poder ir saltitando, em vez de ir amarrada a um banco de criança,
daqueles que tinham inventado para pespegar nos assentos traseiros das
viaturas, sem se poder mexer por causa do cinto de segurança.
Mel tinha um desejo secreto: saber onde
descansava o Pai Natal quando já tinha saído da Lapónia para distribuir os
brinquedos aos meninos e meninas. Sim, porque isto de andar por milhares de
casas e chaminés a subir e a descer, carregadinho de brinquedos, devia ser
muito cansativo, e ninguém a convencia que ele era incansável, até porque, o
pobrezinho, era assim mais ou menos da idade do avô Zé, que já se cansava muito
só de a agarrar ao colo. Dizia ele que ela estava pesada, ela, que só pesava 23
kilos!!! Aquilo só podia ser mesmo da idade, e se o avô Zé se cansava, o Pai
Natal também se cansaria, e devia ter um lugar para descansar os pés.
- Ó mãe, tu achas que me podes fazer um
favor?
- Claro, Melissa, ora diz lá que favor queres
que te faça.
- Pára de me chamar Melissa! Eu sei que é o
meu nome e tudo, e até é um nome bonito, eu gosto, e talvez até queira que me
chames assim quando eu for crescida. Mas agora, que sou pequenina ainda, não me
podias chamar só Mel? É que está mais de acordo comigo, e até tem a ver com as
abelhinhas de que me falaste há pouco, não é?
- Oh, nunca tinha pensado nisso, Mel, está
muito bem observado! A partir de hoje, deste minutinho, passarás a ser chamada
como preferes: Mel! E até dá bem contigo, que és um doce de menina.
Mel puxou a mão da mãe e segredou-lhe ao
ouvido, quando ela se baixou:
- Obrigada, mãe!!! Agora vou ficar caladinha
e pedir a ajuda de uma ninfa para me dar a resposta ao meu segredo.
E dizendo isto, fechou a boca e começou a
falar com a ninfa do seu nome. Dizia ela, dentro da sua cabecinha:
“ Ó ninfa Mellona, já que o meu nome vem do
teu, podes ajudar-me a perceber onde é que o Pai Natal descansa nesta quadra do
Natal? Eu sei que não te vejo, e até pode ser que tu tenhas mais que fazer do
que aturar uma miúda de 5 anos cheia de perguntas, mas se é verdade que existes,
eu sei que tu vais arranjar uma maneira de me dar resposta. Vou ficar à espera,
está bem?”
Nisto, o caminho tinha-se percorrido todo,
sem que Mel desse conta.
- Mel, chegámos! Está na hora do meu beijinho
e do meu abraço!
Alegre que nem um passarinho, Mel lançou os
braços à roda do pescoço da mãe e deu-lhe um beijo repenicado.
Quando se virou, para entrar na escolinha,
mal pode acreditar no que os seus olhos viram: o presépio que tinham construído
nas aulas estava armado, no átrio, e a seu lado, pachorrentamente dormindo,
sentado no sofá em forma de lua, estava nada mais nada menos do que o Pai
Natal!
Hoje, a Mel já deixa que lhe chamem Melissa,
e conta aos seus filhos a origem do seu nome, e o segredo que a ninfa lhe
desvendou: o Pai Natal descansa no sofá em forma de lua do átrio da escolinha,
ao lado do presépio.”
- Cumprido o desejo da Verdantina, a Fada Fadinha deixou
o Bernardo acordar suavemente e então…
Bem-dito e louvado, está o
conto acabado!
- Ó avó, não pode ser, como é que o conto
está acabado se não sabemos o que aconteceu depois ao Bernardo? Isso é batota!!
- Hummm… bem me parecia que vocês não me iam
deixar acabar assim.
O que eu queria dizer é que, por hoje,
acabou-se. Já se fez muito tarde, e vocês precisam de ir para a terra dos
sonhos também. Amanhã há mais.
- Vá, vamos deitar, que a Mata dos Medos
espera-nos amanhã de manhã. Iremos lá passar o dia.
- Obrigada, avó, obrigado avô.
E lá subiram a escada, seguidos pelo cãozito
Tejo, os dois irmãos, Constança e Serafim. Durante o sono, sabiam que iriam
sonhar com todas aquelas personagens da Terra do Faz-de-Conta e no dia
seguinte, conforme prometido, iriam até à Mata dos Medos.
Que outras histórias lhes reservaria a avó? E
até onde os levaria o avô?
(Conto original com que concorri ao Prémio Literário Maria Rosa Colaço deste ano.)